4 de fevereiro de 2013

Itanhaém (SP): Guarda Municipal agride morador de rua

Eles não representam a lei. Eles são a lei. 
Por Leandro Olimpio, com colaboração de Maria Luiza Rodrigues


“Desacato à autoridade, seguido de resistência”. Não foi a primeira e, certamente, não será a última vez que essa frase será tirada da cartola pelas “autoridades de segurança” para legitimar casos de agressão gratuita a cidadãos sem qualquer chance de defesa. Dessa vez, a alegação foi usada pelos homens fardados após eu testemunhar com meus próprios olhos um caso de violência covarde da Guarda Municipal de Itanhaém contra um morador de rua.

A agressão aconteceu na sexta-feira, dia 25 de janeiro, no centro da cidade. O palco deste fato lamentável foi a Rua João Mariano, onde Adilson de Souza Alves, 36 anos, morador de rua, cuidava de alguns carros. 

Na ocasião, dois guardas municipais que passavam pela rua com a viatura de placa DMN9401 abordaram Adilson e exigiram que ele se retirasse dali. A razão? Estava exercendo uma atividade ilegal. Minutos depois, por ter – supostamente – ofendido alguns policiais militares que realizavam trabalho de rotina em uma rua próxima (Avenida Condessa de Vimieiros), foi covardemente agredido.

Mesmo já algemado, Adilson levou diversos pontapés e socos no estômago, além de ter sido enforcado [apertado o pescoço] durante toda a ação. Vi isso com os meus próprios olhos. Em nenhum momento houve qualquer tipo de resistência. A única coisa que ele conseguiu fazer em meio à enxurrada de pancadas foi, apavorado, gritar por socorro e chamar o guarda agressor de covarde. “Covardes, covardes, eu estava apenas trabalhando, não tenho arma, não tô roubando”, gritou repetidas vezes.

Mais tarde, Adilson me contou o que o guarda lhe disse enquanto desferia os golpes. “Ele sussurrou no meu ouvido: ‘estou treinando meu jiu-jitsu em você’”. O resultado: cortes no pulso, causados pelas algemas desnecessariamente apertadas, feridas nas pernas e nos pés (muitas em carne-viva) e várias outras escoriações.

Enquanto o morador de rua apanhava injustamente, um pequeno grupo de pessoas – cerca de dez – aglomerou-se na área. Quando percebi o que estava acontecendo resolvi intervir, na companhia da minha namorada, questionando o guarda o porquê da agressão. Começamos a discutir, dissemos que era abuso de poder e que usavam de força excessiva contra uma pessoa indefesa, já algemada. As pessoas, que até então apenas assistiam à cena, passaram a se manifestar a nosso favor e gritar que ele estava apenas trabalhando. 

Depois de muito insistir sobre a razão de tamanha violência, um dos guardas se limitou a dizer “ele xingou [insultou]” e o outro, autor da agressão, preferiu nos provocar. “Vamos levar ele pra delegacia [esquadra]. Se querem saber por quê, entrem no carro e testemunhem a favor dele”. Foi o que fizemos.

Já dentro do carro, demos uma pequena volta no quarteirão e estacionamos no local onde a Polícia Militar (PM) supostamente ofendida realizava uma abordagem. Os guardas contaram o que aconteceu aos policiais que, claro, deram muito mais ouvidos à versão dos oficiais da Guarda Municipal (GM) do que à nossa versão. Mesmo assim, não deram muita importância para o caso e admitiram não ter ouvido nenhum xingamento [insulto]. Pelo tom da conversa, me pareceu que estavam de fato indiferentes. Ou seja, os PMs que teriam sido ofendidos por Adilson sequer ouviram tal ofensa.

Fomos então para a seccional de Itanhaém para impedir que o caso se prolongasse e que a versão dos guardas prevalecesse. Grande engano. Entramos na delegacia às 23h30 e saímos de lá quase às 5h. Até poucos minutos antes de irmos embora tentaram a todo custo nos fazer desistir, seja nos dando o velho “chá de cadeira”, seja nos fornecendo informações confusas e duvidosas que indicariam que ele tinha passagem na polícia e/ou era foragido. Não cedemos. Continuamos lá e falamos que não sairíamos enquanto não fossemos ouvidos. O delegado chamou o inspetor da Guarda Municipal para tomar conhecimento do fato, o que na prática não ajudou em nada. Pelo contrário. Todos blindaram os agressores.

O Delegado ria o tempo todo e volta e meia dava declarações irônicas como “e aí, quem são os advogados do figura?”. Os investigadores e a escrivã seguiram o mesmo script, sendo que a última chegou a mandar minha namorada (testemunha!) calar a boca enquanto tentava explicar o ocorrido. Já o inspetor da GM, que deveria ouvir ambas as partes, já que não estava no local da ocorrência, preferiu dizer que não devia informações a nós e nem à sociedade, mas sim à autoridade, que era o delegado ali presente.

Acho que não preciso dizer que nenhum tipo de inquérito ou investigação foi proposto pelas autoridades para saber se, de fato, houve abuso de poder da GM. Afinal, não era a versão dos guardas contra a versão do morador de rua. Dessa vez, existiam duas testemunhas na história, sem qualquer grau de parentesco ou amizade com o morador de rua, que deveriam ser levadas em conta. O fato é que nos ouviram por mera formalidade. Uma espécie de complô de parceiros se formou contra nós.

Depois de nos fazer esperar por mais de 3 horas, por volta das 4h resolveram colher o nome do morador de rua para iniciar o caso. Como havia falado para mim, o morador de rua disse aos policiais que seu nome era Adilson de Souza Alves. Ele teria 36 anos, morava na rua há quatro meses e era viciado em crack. Chegou a ser internado em uma clínica de reabilitação, mas depois de tantas recaídas acabou desistindo. A família também havia desistido dele, de modo que o lugar que encontrou para sobreviver era a rua.

Após checar o nome e confrontar com os nomes dos pais que ele forneceu, nos disseram que ele havia passado um nome falso, pois não constava no sistema da Polícia Civil, que segundo as autoridades é infalível. Mais tarde, os investigadores afirmaram que ele havia passado mais dois ou três nomes diferentes, o que não posso confirmar.

Uma espécie de simulado feito por eles, em que tiraram um dos nomes do meio da mãe, os fez encontrar um Adilson de Souza Alves que seria da Bahia e estaria foragido. O mandado era de prisão em regime semiaberto. O motivo: roubo. A pena: cinco anos e quatro meses. O papel que continha essa informação foi entregue pelo delegado para nós com um sorriso no rosto, que parecia expressar a certeza de que, diante de um “bandido”, iríamos desistir de sermos testemunha dele. Para todos eles, o suposto passado de crimes de Adilson, também tirado praticamente da cartola, era suficiente para legitimar a agressão e dar ao GM não apenas a razão, mas o direito de ganhar uma medalha de honra ao mérito. Foi repulsivo.

Evidentemente, nada disso alterou o nosso desejo de prestar uma queixa formal contra os agressores. Para nós, pouco importava se ele tinha passagem, se ele era foragido, se era réu primário. Nada disso mudava o fato de que ele foi agredido covardemente por alguém pago por nós para proteger os moradores.

Depois de muito esperar, finalmente colheram os nossos dados como nome, RG [bilhete de identidade] e endereço. Entretanto, fomos surpreendidos com a notícia de que não iríamos ser ouvidos como testemunhas, pois a prioridade do plantão da seccional era a ocorrência de flagrantes. Detalhe: poderiam ter dito isso há mais de três horas, mas preferiram nos comunicar apenas por volta das 4h30 da manhã. Parece que queriam nos castigar por termos a ousadia de tentar defender um mero “morador de rua”.

Enfim, não fomos ouvidos como testemunhas e apenas constamos no B.O [boletim de ocorrência] (que sequer foi encerrado naquela noite) como pessoas que discordavam da versão da GM de “desacato, seguido de resistência”.

Por fim, pouco antes de irmos embora, um dos investigadores – de saco cheio [chateado] por não conseguir encontrar o nome do morador de rua no sistema – foi claro sobre qual a forma de proceder com pobres sem advogados e poder de defesa. “Se eu fosse o delegado prendia ele com o nome desse Adilson da Bahia aí mesmo”. “Mas ainda não temos prova”, disse a escrivã, vendo que estávamos ouvindo. “Foda-se”, ele respondeu – sem qualquer medo de ser ouvido. Para esses senhores, eles não representam a lei. Eles são a lei.

No dia seguinte, sábado, 26 de janeiro, fomos buscar o B.O. Ainda não estava pronto, pois ainda procuravam informações junto às autoridades da Bahia sobre o tal Adilson encontrado no sistema. O morador de rua, segundo nos informaram, estava “provavelmente” preso.

Por essas e outras que não me causa surpresa o fato de que qualquer cidadão se sinta ameaçado, e não protegido, quando vê um carro da polícia militar passar na rua. A opressão contra os pobres é institucionalizada, tem nome, farda e cor. A política de higienização social e criminalização da pobreza do governador Geraldo Alckmin (PSDB) desceu a serra e encontrou terreno fértil nas cidades chefiadas por seus amigos tucanos [membros do PSDB].

Ainda em tempo
Até esta quinta-feira, dia 31 de janeiro, não conseguimos ter acesso ao B.O. A escrivã, que coletou nossos nomes, RG, endereço e telefone, garantiu que constaríamos no B.O. Tentei pegar uma cópia do documento, mas recebi a informação – tanto na Polícia Civil de Itanhaém, quanto na Polícia Civil de Santos, cidade onde moro – que nossos nomes não constam no B.O. Nada. Nem no histórico. Surpresa? Não. Consta apenas “desacato, seguido de resistência”. Adilson, “por fornecer nome falso”, continua preso.


Fonte: Passa Palavra (passapalavra.info)

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